Sunday, December 09, 2007




DA MINHA JANELA VI







Depois de uma boa noite de sono vou ver mais uma vista Da minha janela, desta vez sobre Belgrado em Abril de 2006.







Corvus corone cornix

Há uns tempos estive em Belgrado, em trabalho, durante alguns dias. Era a primeira vez que me deslocava a um país da ex-Jugoslávia, e logo à Sérvia, que continua a guardar as marcas de anos e anos de guerras e uma grande instabilidade social e de fronteiras (quando lá estive, ainda se chamava Sérvia e Montenegro!).
Numa visita guiada por Belgrado vimos vários edifícios oficiais da antiga Jugoslávia que guardam à vista de todos, sérvios e não sérvios, os resultados dos bombardeamentos da NATO em 1999, em que a capital Sérvia foi bombardeada todas as noites durante 79 dias. Curiosamente ou talvez não, as pessoas que viveram esses momentos dizem-nos que o seu dia-a-dia se manteve inalterado pois os bombardeamentos eram só de noite e os alvos eram estrategicamente escolhidos e raramente falhavam. É difícil de compreender para nós, assim como é difícil ver uma cidade e um país do centro da Europa (mas fora da nossa Europa) a viver uma vida tão diferente da nossa: as ruas e os edifícios sujos e degradados, um parque automóvel como eu nunca vi nem em Portugal, nem há trinta anos atrás, contudo um povo confiante no seu futuro, apesar da “nossa” Europa estar ainda a muitos anos de distância e apesar disso tão perto… Mas, dentro daquele atraso socio-económico havia um Danúbio magnífico que ainda este ano tinha galgado as suas margens, com as suas marcas ainda presentes nas casas submersas nas margens alargadas pelos caprichos da natureza. No centro da outrora capital da Jugoslávia destacava-se pela sua imponência e pela extraordinária recuperação levada a cabo nos últimos anos, a magnífica catedral ortodoxa de St. Sava que pela sua alvura e grandiosidade se destacava de todos os monumentos de Belgrado. Ao passarmos e admirarmos a catedral, perguntei a um dos monitores do curso, que nos acompanhava, qual era a religião predominante na Sérvia ao que ele respondeu que era a cristã ortodoxa, mas que só agora estava a recuperar de anos de “clandestinidade”. Quando lhe perguntei a razão de ser dessa sua afirmação ele respondeu-me assim:
- No tempo do comunismo a ida à igreja não era bem vista pelas autoridades e por isso muita gente, com medo de represálias, não frequentava os locais de culto. Na minha família, a minha mãe é religiosa e cristã, mas não podia frequentar a igreja, pois o meu pai trabalhava para os militares e era vedado à sua família a prática religiosa sob pena de perder o seu emprego; assim muitas pessoas, durante muitos anos não puderam expressar a sua fé livremente e eu durante muitos anos nunca entrei numa igreja. Agora as coisas são diferentes e as pessoas podem exprimir livremente a sua fé e por isso muitos dos templos abandonados e esquecidos durante o comunismo voltam a ter a seu esplendor de outrora e a encherem-se de crentes.
Outro grande monumento de Belgrado é a imponente fortaleza de Belgrado, situada num local muito amplo e elevado na confluência dos rios Danúbio e Sava, com as marcas presentes de uma ocupação humana desde o Neolítico. Esta fortaleza alberga um grande parque, como muitos que há em Belgrado com árvores frondosas, jardins imensos e um habitante muito peculiar, pelo menos para nós portugueses: o Corvus corone cornix, ou gralha cinzenta, que em grande abundância povoa as árvores, os jardins, os telhados e a vida desta cidade. É uma ave impressionante pela sua envergadura, pela sua beleza negra e cinzenta e pela forma como convive de perto com os seres humanos.
A primeira imagem que eu tive da gralha cinzenta foi ao chegar ao meu quarto do hotel e olhando para a janela, ver ali pousada uma enorme ave de cerca de meio metro de envergadura e com umas cores magníficas que eu nunca havia visto antes, e que me acompanhou durante os dias em que estive em Belgrado.
Quando me preparava para deixar o hotel, rumo ao aeroporto e como que para se despedir, vem pousar na janela do meu quarto a minha amiga gralha cinzenta; ou seria outra? Não me interessa verdadeiramente quem era, mas a imagem que me ficou de Belgrado foi a de Corvus corone cornix.
"É quando a arte se veste com o tecido mais usado, que melhor se a reconhece como arte."
Nietzsche

No comments: